sábado, 12 de fevereiro de 2011




Enquanto cruzava o campus da UCD no último dia de outubro, Frances Tibbs compreendeu que, pela primeira vez na vida, estava apaixonada.
Ou melhor, pensava estar apaixonada. Ainda não o dissera em voz alta, não testara as palavras em sua boca, mas sentia que era amor: tudo ao seu redor parecia ter se tornado fresco, novo e excitante.
Então um homem parou bem na sua frente e quase a matou de susto. Agarrou os freios da bicicleta e derrapou, desviando dele por pouco. Uma meia de náilon, metade de uma meia-calça, cobria a cabeça do homem. Em sua mão direita, ele carregava uma enorme arma, talvez um rifle ou uma espingarda. Franny não sabia a diferença, mas, ao olhar com mais cuidado, viu que não parecia real. Era menor do que imaginava ser o tamanho de um rifle e parecia de plástico.
Plástico.
Uma arma de brinquedo. Era Halloween, lembrou. Dia das Bruxas. O homem, na verdade um estudante da universidade, ria, satisfeito com o susto que lhe causara. Seguiu em frente, empunhando seu rifle.
Sentindo-se perfeitamente idiota, subiu na bicicleta e acompanhou Putah Creek pelo norte. A água, represada do lado norte do córrego, era rasa, parada e de uma cor esverdeada e insalubre.
Exalava um cheiro de coisa velha e podre que ela ficou contente em deixar para trás. A partir daí o caminho tornava-se aprazível, com fileiras de árvores e vegetação densa de um verde escuro. O ar cheirava a terra e a mato, odores de uma floresta. Pedalava até lá na esperança de encontrar seu novo amigo, Michael.
Não conseguia explicar exatamente por que ele a atraía. Só sabia que pensava nele constantemente e que, desde que o conhecera, sua vida adquirira um novo brilho, abrindo-lhe um novo leque de possibilidades. De certa forma, lembrava-lhe o pai, um homem paciente com quem sempre contara para protegê-la. Já fazia tanto tempo que seu pai e sua mãe haviam morrido e, embora tivesse uma irmã, sentia-se sozinha no mundo. Mas Michael tinha empatia, parecia compreender toda a sua história com um simples olhar. Era uma sensação gostosa.
Descendo uma ladeira, ganhou velocidade. Andar de bicicleta fazia parte de seu novo regime para emagrecer. Tinha vários caminhos favoritos: as casas ensolaradas da parte oeste de Davis, a
ciclovia Howard Reese, que seguia Russell Boulevard até Cactus Corners, e o caminho que fizera hoje, e que fazia com maior freqüência, o que margeava Putah Creek na extremidade sul do campus. Era estreito e rodeava o Arboretum da universidade, um enclave de bosques, com arbustos e árvores: sequóias canadenses, pinheiros e eucaliptos. Franny adorava este lugar. Havia mesas de piquenique sob as árvores, lascas de madeira no chão, folhas mortas se decompondo na terra, e um cheiro de coisa antiga que evocava tempos passados. Era o cheiro úmido de lugares há muito esquecidos, de civilizações antigas enterradas sob camadas de detritos e matéria em decomposição.

Atravessou uma ponte de madeira para chegar até um morro coberto de grama, do outro lado. Neste ponto, o córrego se alargava transformando-se numa poça larga e escura, local ideal para observar os patos. A esta hora do dia, bem de tardezinha, o campus se aquietava e o local tomava-se seu. Desceu da bicicleta e sentou-se na grama, perdendo-se em devaneios, esperando que Michael viesse. A brisa estava fresca, mas não tão fresca como ficaria dali a algumas semanas, quando o nevoeiro se acomodaria e invadiria os ossos. O céu tinha uma cor desbotada de água suja, cinza e chapada. A brisa ondulava a superfície da água com suavidade e farfalhava pelas copas das árvores. Folhas vermelho-amarronzadas esvoaçavam ao seu redor, carregadas pelas repentinas rajadas de vento.

Franny abraçou os joelhos para manter-se aquecida. O gramado havia sido aparado recentemente e emanava um cheiro fresco e úmido de capim cortado. Anos antes, quando era criança, seu pai a trouxera a este local com Billy, seu irmão. Nora, a irmã mais velha, já era então adolescente e não quisera acompanhá-los. Mas Franny e Billy adoravam o Arboretum e algumas vezes ficavam simplesmente sentados com os olhos fechados como que em transe, absorvendo os sons à sua volta. Ouviam seu pai, um cientista ambiental, explicar a ligação do homem com a natureza. Existe um elo evolucionário, ele explicara mais de uma vez, desenvolvido através de milhares de anos, que liga as pessoas de forma inextricável a tudo que há a seu redor, à terra, ao sol, ao céu. E aqui, ao ar livre, com o som do vento ziguezagueando por entre as árvores, o ocasional grasnar de um pato, o barulho dos pneus de algum ciclista, de alguma forma, ela se sentia calma. Não sabia se era a força da natureza ou a força protetora da doce lembrança de seu pai. A esta altura haviam se tomado unas.

Dois universitários, um rapaz e uma garota, atravessaram a ponte de braços dados e pararam na metade para olhar a água que corria logo abaixo. Pensativa, Franny os observava, seus sorrisos sonhadores, seus rostos tranqüilos. Era óbvio que se amavam, e isto a fez sorrir. Podia ouvi-los conversar, mas não distinguia as palavras. Seus risos levitavam até as copas das árvores.

Mais adiante, na direção do campus, ela procurou por Michael. Conhecera-o neste mesmo local há três semanas. Ela trouxera um saco de pão dormido para alimentar os patos quando alguém falou às suas costas:

— Você não é estudante.

Surpresa, ela se virou. Era a primeira vez que via Michael. Era alto e moreno, com cabelos escuros que se tornavam grisalhos nas têmporas. Calculava, pelas rugas em seu rosto, que devia ter quarenta e tantos anos. Tinha uma expressão sábia e quase cínica, como se já tivesse visto e feito de tudo. Com as duas mãos nos bolsos, ele a encarava sem piscar, seu rosto inescrutável. Franny abaixou a cabeça. Quando olhou para cima, ele ainda a olhava com olhos frios e insensíveis, ou assim ela pensou. Mas, lentamente, um sorriso foi surgindo em seus lábios. Ela estava pouco à vontade sendo o centro de suas atenções e sentia que ele a analisava por algum motivo, tentando chegar a alguma conclusão a seu respeito.

— Não, não sou estudante — respondeu. Ficou ruborizada, como se tivesse feito algo de errado, embora soubesse que nada fizera. Desviou o olhar. Arrancou um pedaço do pão e atirou-o para um pato. Havia cinco à sua frente, todos com reluzentes cabeças esverdeadas. Vieram todos brigar pelo pão. Ela atirou o resto e enfiou a mão na bolsa para pegar mais. O homem não se movera, e ela o sentia observá-la, deixando-a insegura.

— Você não parece ser estudante — disse ele finalmente, fazendo com que Franny se perguntasse por que não. Não terminara a faculdade há tanto tempo assim. — Já vi você aqui, deitada na grama, alimentando os patos. Sempre vem aqui mais ou menos a esta hora, sozinha.

Franny lançou-lhe um olhar rápido e enviesado, mas nada disse. Era um pouco desconcertante descobrir que alguém a observava há algumas semanas. Olhou para ele mais uma vez. Tinha traços bem definidos: queixo quadrado, nariz reto e exato, corpo magro mas forte. Não era o que chamaria de bonito, ela pensou, mas era imponente. Imponente até demais. Queria que algo nele fosse amorfo, algo que o tornasse menos intimidador, talvez umas gordurinhas na cintura, ou uma papada.

— Permite? — perguntou ele e, sem esperar a resposta, agarrou-lhe o pulso e ergueu seu braço para tirar a fatia de pão de sua mão. Franny, atordoada com o grau de intimidade contido no gesto, permaneceu calada. Assistiu enquanto ele alimentava os patos com o seu pão.

— Venho aqui a esta hora do dia esperando encontrá-la. Quando não a encontro, sinto que meu dia está incompleto, que algo está faltando. — Virou o rosto de leve e olhou para ela com um brilho divertido nos olhos. — Conto com você como conto com a primeira xícara de café do dia.

Franny sorriu; jamais havia sido comparada à cafeína. Em seguida, ele se apresentara, e há três semanas vinham se encontrando neste mesmo local. Não era sempre que vinha. Às vezes passava

vários dias sem aparecer e ela ficava ansiosa, com um nó no estômago perguntando-se se o veria outra vez. Mas então ele aparecia e começava a conversar, sem explicar sua ausência. Ele tinha um jeito sereno, relaxado, que a deixava à vontade para falar o que quisesse. Na verdade, ela é que o deixava falar. Ele parecia não se importar, como tantas pessoas, e não a forçava a se abrir. Ele parecia saber, de forma intuitiva, que ela mudaria quando estivesse pronta. Ficava grata por isto, pois a maioria das pessoas desistia dela antes que Franny se sentisse bem com elas. E foi assim que logo se pegava pedalando na direção de Putah Creek, não pelo exercício, e sim com o simples intuito de encontrá-lo, ficando desapontada quando ele não aparecia.


Michael era professor do departamento de música; era sofisticado e inteligente. Ele não fazia o tipo que, segundo imaginara, se interessaria por ela. Não que ela tivesse um tipo específico em mente. Saíra com alguns homens, mas as coisas nunca pareciam dar certo. No mês passado, Nora a arrastara para uma festa com colegas do Bee e ela conhecera um homem. Era repórter, como Nora, e tinha cabelos louros e uma aparência tão franca, tão íntegra, uma inocência tão pueril que confiou nele instintivamente. Ele parecia sincero, mas na manhã seguinte, depois de ter dormido com ele, ele lhe disse, muito acabrunhado, que bebera demais. Franny só podia culpar a si própria. Ela jamais agira de forma tão impulsiva, dormindo com um homem que acabara de conhecer. Havia sido impetuosa demais, desesperada demais, esperando que o sexo, que nem fora tão bom assim, levasse a uma maior intimidade. Não levou. Tomaram café da manhã no Food for Thought, na rua K, mas o desconforto dele ficou patente durante toda a refeição. Ele foi educado demais, solícito demais: cometera um erro e tentava se redimir de forma cortês. Ela via apreensão, piedade e tensão em seus olhos. Se não tivesse se sentido, ela mesma, tão mal, teria sentido pena dele. Depois disso, esperou que ele telefonasse durante vários dias, e, quando viu que ele não ligaria, ela mesma ligou. Foi embaraçoso e humilhante. Talvez pudessem ser amigos, ele disse gentilmente. Ela desligou após recusar a oferta bem-intencionada porém pouco sincera.

Michael jamais se comportaria assim, ela pensou de repente.Michael. Descobrira que ele tinha o dobro de sua idade, quarenta e oito anos, apenas seis anos a menos do que seu pai teria. Mas ela se sentia bem com ele, como jamais se sentira com outra pessoa. Às vezes, em casa, ela sonhava com Michael. Ela o inseria no contexto de sua vida, fingia que era seu namorado. Não tinha a mínima idéia do que ele pensava a seu respeito, nem mesmo se pensava nela. Embora fosse amável e parecesse gostar realmente dela, ele parecia fora do seu alcance.

Ouviu o ruído de passos na grama, bem atrás de onde se encontrava, e sorriu. Sabia que era Michael.

— Olá, Franny.

Virou-se ao ouvir sua voz. Ele sempre parecia surgir do nada, surpreendendo-a enquanto sonhava acordada. Sua súbita aparição a fez sorrir. Havia uma sensualidade nele que ela não conseguia entender, algo poderoso que a arrastava como uma correnteza. Mas havia algo remoto em seus olhos escuros e impassíveis, no tom controlado de sua voz, que fazia com que quisesse estender os braços e puxá-lo para si, muito embora soubesse que jamais seria capaz.

Ele se sentou ao seu lado, na grama, e apoiou-se nos cotovelos, sem parecer sentir o vento frio. Vestia-se de maneira informal, calças marrons e uma jaqueta com as mangas arregaçadas, mas a ela parecia sempre formal, independentemente de como estivesse vestido. Ele parecia tão bem-arrumado, sempre à vontade consigo mesmo, enquanto Franny sentia-se desmazelada e com frio, metida num amontoado de roupas amorfas: um casaco grande demais, calças jeans pretas, suéter de tricô, echarpe de lã e luvas.

Em silêncio, ele observava o jovem casal da ponte. Eles deram as costas e caminharam de mãos dadas, sumindo logo em seguida.

— Jovens apaixonados — afirmou ele com um leve tom de sarcasmo. Franny olhou para ele, esperando mais alguma coisa. Mas ele nada disse.

— Eu acho encantador — discordou ela finalmente, a voz suave.

Michael a olhou pensativo. Seu olhar era penetrante, como se pudesse ler seus pensamentos. Envergonhada, ela baixou a cabeça. Uma rajada de vento emaranhou seus cabelos. Então, com enorme suavidade, ela sentiu as mãos dele acariciarem seu rosto. Era a primeira vez que a tocava.

- Tem razão, Franny, pode ser encantador. Nunca foi assim com você, não é?

Era tão transparente assim?, ela se perguntou, sentindo o rosto arder, envergonhada de que ele soubesse que, aos vinte e quatro anos, jamais se apaixonara, nem ao menos chegara perto de se apaixonar. Começou a dizer que não, que o amor nunca fora encantador para ela, mas no mesmo instante uma morena mignon, de cabelos negros e ondulados, sorriu e falou com Michael. Parecia flertar com ele. Era claro que se conheciam. Ela era muito bonita, com sobrancelhas bem-definidas, lábios pintados e um conjunto de linho cor de vinho, bem justo, do tipo que só fica bem mesmo em mulheres pequeninas.

Franny brincou com o capim, puxando uma erva daninha com raiz e tudo.

— Bonita, ela. Acho que gosta de você.

Michael sorriu sorrateiramente e ela ruborizou. Sabia que ele adivinhara que estava com ciúmes.

— Não importa. Não estou interessado nela. Quer saber o tipo de mulher que me interessa?

— É... Bem... — tentou Franny, mas a voz sumiu. Não tinha certeza se queria ouvi-lo falar de outras mulheres.

Michael deu uma gargalhada profunda e gentil e disse:

— Vamos para a minha casa. Acho que já está na hora de fazer amor com você.

Os olhos de Franny piscaram, incrédulos. Em seus sonhos não era assim que acontecia. Ele nunca dissera: "Está na hora de fazer amor com você." Esperara alguma coisa diferente, algo um pouco mais romântico.

Como ela nada disse, ele se pôs de pé.

— Vamos. Arrisque.

Franny sabia que nunca enfrentara desafio algum na vida, nunca vivera uma aventura. No fundo era porque não corria risco algum. Nora, sua irmã mais velha, estava sempre se arriscando. Foi à Nicarágua no meio daquele charivari todo. Acampava sozinha. Em uma de suas férias, desceu as corredeiras do rio Urubamba, no Peru. Franny não conseguia se ver vagamundeando sem destino, arriscando sua vida por puro divertimento. Talvez, pensou, estivesse mesmo na hora de se arriscar. Então o olhou e disse a única coisa que lhe veio à mente:

— Tá.



Michael pôs a bicicleta na mala do carro e foram até sua casa, em Willowbank, na parte sul de Davis. As casas eram todas amplas e antigas, a maioria bem-conservada, com portais cobertos de hera e imensos gramados e árvores seculares para todos os lados. A casa de Michael ficava afastada da estrada. Era uma espaçosa casa de fazenda, escondida por trás de glicínias. Por dentro parecia ter sido reformada recentemente: chão de tábua corrida encerada, clarabóias na cozinha e no hall, bancadas de azulejo, imensas janelas na sala de estar. Era uma casa austera, porém confortável, pensou Franny, como Michael.

Nervosa, andou pela casa. Era decorada em tons terra, cores quentes e suntuosas. Deveriam tê-la acalmado, mas não acalmaram. Sentia-se deslocada, desajeitada, como uma pata numa loja de roupas: não pertencia a este lugar.

Michael a observava examinar a casa. Um a um, ele tirou o casaco de Franny, a echarpe, e as luvas. Franny tinha a sensação de estar sendo descascada, camada por camada. Ele preparou um drinque sem perguntar se ela queria e o entregou dizendo:

— Beba, acho que precisa relaxar um pouquinho.

Ela normalmente não bebia, não gostava do gosto, mas, como uma criança, fez o que lhe mandaram. Ele a levou até o sofá e se sentaram. Ele conversava com ela como fazia no campus, de maneira suave, como se a acariciasse com as palavras. Pensou nas palavras de seu pai, igualmente suaves, e por fim relaxou. Não sabia ao certo se fora a voz de Michael, as palavras silenciosas de seu pai ou a bebida. E finalmente, quando Michael a beijou, o fez com ternura, nada como os beijos bêbados e melados do último homem com quem estivera, o tal repórter do Bee. Suave, carinhoso e infinitamente erótico: era tudo com que sonhara.

Ele a levou para o quarto e pendurou a jaqueta numa cadeira. O cômodo de pé-direito alto, arqueado, era espaçoso, claro e arejado, com as paredes cobertas de papel em tons pálidos de azul e cinza, os móveis claros modernos e confortáveis, com uma cama de casal com quatro colunas. As cortinas estavam abertas, e através da vidraça ela dia ver um enorme cachorro preto andando no gramado. Michael olhava Franny, que permanecia imóvel, em pé na soleira da porta.

- Não fique assim tão séria. Você vai gostar.

- Desculpe — disse Franny, arriscando um sorrisinho tímido.

Ela apagou a luz. Ainda não estava escuro lá fora, e tudo no quarto, mesmo com a luz apagada, estava visível. Perguntava-se como chegaria à cama e se enfiaria debaixo das cobertas sem que ele a visse. Não era exatamente gorda. Era o que algumas pessoas chamavam de cheinha, uma figura tirada dos quadros de Rubens. Qualquer que fosse o termo, não queria se expor. Michael tinha os ombros largos e estatura mediana. Não tinha gordura nenhuma. Olhou a cama mais uma vez, tentando bolar uma estratégia de aproximação, enquanto mordia o lábio inferior.

Michael foi até ela e a abraçou.

— Franny, que expressão mais mórbida. Conte-me o que há.

— É que não tenho muita experiência com este tipo de coisa. Ele sorriu.

— Eu sei disso.

Ele tirou seu suéter e ela achou por bem se desculpar:

— Acho que preciso perder uns quilinhos. Michael riu baixinho. Beijou-a no pescoço e disse:

— Eu vou lhe dar o que quer, Franny.

Ela se perguntou o que seria. E o que queria, afinal? E então ele já estava tirando toda a sua roupa, esfregando seu corpo com as mãos, manuseando-a como se fosse massa de pão, macia e quentinha. No começo ela se sentiu envergonhada, pois ele não a deixava se esconder debaixo das cobertas, mas depois ela se perdeu sob suas mãos hábeis. Ele parecia realmente não se importar com sua gordura. Ele a virava de um lado para o outro, como se ela fosse um manequim, jogando de cá para lá seus braços e pernas, chupando e puxando seus seios fartos, introduzindo dedos em seus orifícios, cutucando, massageando, até que ela sentiu que algo se mexia dentro ela. Era como a força da natureza que sentira em Putah Creek, só que mais forte, mais urgente, e ele a forçou a se abrir para ele, mergulhando sua língua bem no âmago de seu ser, alimentando-se dela até que ela se rendeu, pela primeira vez na vida, aos seus instintos mais primitivos, uma incrível liberação ao mesmo tempo assustadora e fantástica. E em algum lugar, de alguma forma inex¬primível, veio a compreender o que realmente queria: uma família, um namorado; um pai, um amante.



DOIS







Sue Deever, uma paciente que ficara diabética já adulta, estava sentada numa confortável poltrona cor de malva ao lado do aparelho de diálise, esperando que Franny a conectasse. Era uma mulher de cinqüenta e poucos anos de idade, atarracada, que perdera ambas as pernas. Franny trabalhava na clínica de hemodiálise da universidade há quase dois anos e fora testemunha do lento declínio da sra. Deever. Era mãe de uma amiga de infância de Franny, e, até começar a trabalhar na clínica, não a via há anos. Ficara chocada com sua aparência. A perna direita fora amputada há quatro anos, e a esquerda, logo depois que Franny entrou para a clínica. Sua visão estava embaçada, seu sistema nervoso afetado, seu fígado funcionava mal devido aos muitos anos de consumo de bebidas alcoólicas. E tinha insuficiência renal, exigindo hemodiálise regularmente. Vivia num asilo em Davis e vinha à clínica três vezes por semana. Era uma mulher doce, e Franny ficava triste em vê-la em tais condições.

A clínica era em Sacramento, no complexo médico, na esquina de Alhambra com Stockton. A sala de espera parecia-se com a de qualquer consultório médico: uma fileira de cadeiras baixas, um leque de revistas nas mesas de canto, mas, para passar da sala de espera, os pacientes tinham que transpor uma porta que era mantida fechada. Um corredor estreito levava à ante-sala, com várias cadeiras, uma pia, uma balança rebaixada para acomodar cadeiras de rodas. E finalmente chegava-se à sala principal de tratamento, um aposento grande e agradável, pintado em suaves tons pastel. No meio da sala de chão de linóleo havia duas seções de enfermagem e dezoito poltronas reclináveis encostadas nas quatro paredes, cada uma com um aparelho de hemodiálise ao lado. Era cedo, um pouco depois das sete da manhã, e a equipe estava ocupada. Todas as poltronas estavam tomadas, com pacientes já conectados ao seu rim artificial ou aguardando a vez. A maioria dos pacientes era velha e cansada, seus corpos alquebrados, sem nenhuma capacidade natural de recuperação. Grande parte do trabalho era feita pelos técnicos, mas hoje havia um a menos, e Franny teve que se ocupar com três pacientes, um dos quais era a sra. Deever.

A sra. Deever já fora pesada, sua temperatura verificada e seu braço desinfetado com betadina, um tipo de iodo bactericida. Franny acabou de tirar-lhe a pressão, auscultou seus pulmões e seu coração, e fazia periodicamente anotações no gráfico preso à sua prancheta. Olhou para cima, além da poltrona da sra. Deever. Cortinas escuras sombreavam uma fileira de janelas. Lá fora, um feroz vento norte varria as nuvens no céu. Quando Franny viera para o trabalho de manhã, com o vento empurrando seu carro enquanto atravessava o elevado de Yolo, vira, surgindo a distância, os picos cobertos de Sierra Nevada. Talvez conseguisse que Michael a levasse até lá no fim de semana, pensou.

— Está frio, não é mesmo? — comentou a sra. Deever, observando Franny. — Aposto que está sonhando com seu novo namorado.

Franny baixou os olhos e sorriu. Os cabelos da sra. Deever batiam nos ombros. Eram de um louro desbotado, e ela insistia em enrolá-los, embora caíssem muito e as pontas estivessem quebradiças. Usava maquiagem, como sempre o fazia: batom vermelho brilhante, pó facial para encobrir a pele manchada, rímel passado com esmero e sombra nos olhos. Tentava manter-se íntegra, embora o corpo não quisesse cooperar. Seu rosto, apesar do inchaço e da pesada papada, irradiava simpatia. Franny se afeiçoara a ela durante os últimos dois anos e não só a via na clínica como também visitava-a com freqüência no hospital. Como seus dois filhos vivessem em outro estado, a sra. Deever era quase maternal em relação a Franny.

Era solidária e ouvia seus problemas, dando conselhos, quer Franny quisesse ou não Franny reconhecia que tal relacionamento baseava-se na solidão, mas não importava. A presença da sra. Deever a lembrava do quanto sentia falta de sua mãe; sabia que a sra. Deever sentia falta de seus filhos.

-É, estou sim — afirmou Franny sorrindo. Por cima de seu uniforme azul, usava um avental plástico. Usava também uma máscara transparente sobre a face e luvas de borracha, procedimento normal para os técnicos e as enfermeiras durante o processo de conexão para protegê-los do sangue do paciente. Franny encontrou a fístula arteriovenosa no antebraço da sra. Deever. Tratava-se de um desvio permanente, que atrelava a artéria a uma veia. A maioria dos pacientes tinha a fístula no braço, embora vários pacientes, nenhum dos quais presentes na clínica naquele momento, não pudessem usar o desvio normal e tivessem cateteres Quinton instalados na veia subclavicular, abaixo do pescoço. Franny inseriu duas agulhas na fístula e conectou os tubos das agulhas ao aparelho de diálise, que bombearia o sangue arterial, filtrando-o e devolvendo-o através da veia.

— Ele a levou a algum lugar agradável na semana passada? — indagou a sra. Deever.

— Sim. Fomos até Napa Valley e pernoitamos.

— Napa? Degustaram vinhos?

— Fomos a várias vinícolas. Nem sei quantas. Depois me levou a um restaurantezinho francês muito charmoso. A comida estava excelente. — Tirou a pressão da sra. Deever mais uma vez enquanto conversavam; tiraria sua pressão a cada meia hora durante o tratamento. Contou tudo a respeito da viagem, dando o maior número de detalhes possíveis: a encantadora pousada na qual haviam passado a noite de sábado, as taças de vinho que ele comprara para ela de lembrança, o cheiro azedo do vinho fermentando.

Na verdade, era tudo mentira. Franny envergonhava-se de admitir que Michael não a levava a lugar algum. Estavam namorando há quase um mês e ele jamais a levara para passear. Estava semp

muito ocupado com suas aulas na UCD e com seus alunos, além de ter sua própria música com que se ocupar e os seus artigos para escrever.

Com tanta coisa para fazer, nunca tinha muito tempo para passar com ela. Franny compreendia que ele era um homem ocupado e não gostava de reclamar. Só que gostaria que ele saísse com ela de vez em quando, fosse ao cinema, talvez, ou a levasse para jantar fora. Quando se encontravam, era quase sempre na casa de Michael, quando ele telefonava para ela e a mandava ir até lá, geralmente tarde da noite, como se ela fosse uma segunda opção.

— Ele parece um bom partido. É bom agarrar este daí logo — comentou a sra. Deever. Falava como se Franny tivesse muitas opções de homens, muitos que pudesse agarrar. Franny olhou os outros pacientes para ver como andavam.

Suspirando, a sra. Deever girou o pescoço de um lado para o outro para estalá-lo e fechou os olhos. Levou a mão ao pescoço e acariciou-o de leve. Franny ia se afastar, mas os olhos da sra. Deever se abriram outra vez e, apesar de cansada, ela recomeçou a conversa.

— Meu Frank não era nenhum bom partido. Fazia de tudo para dificultar a minha vida. Não sei por que alguns homens são assim. Ele conseguiu me fazer desistir dos homens. Depois dele eu não quis tentar com mais ninguém. — Fechou os olhos e cochilou logo depois.

Franny lembrou-se de quando ia à casa da sra. Deever, depois da aula, com Jenny, a filha da sra. Deever, no primário. O pai de Jenny vivia fazendo viagens misteriosas, durante as quais a sra. Deever se consolava com a garrafa de bebida. Enquanto ela e Jenny brincavam no quarto, a sra. Deever irrompia porta adentro carregando um prato de biscoitos, ou brownies, ou algumas vezes nada. Queria uma desculpa para estar com elas. Deslizava para dentro do quarto, com um sorriso forçado, interrompendo a brincadeira. Fora belíssima naquela época, uma mulher curvilínea com seios enormes e unhas pintadas e cabelos dourados e jóias que tilintavam e cintilavam acompanhando seus movimentos, hipnotizando as meninas de dez anos de idade. Com as pernas cruzadas na altura dos joelhos, balançando o pé casualmente, sentava-se na beirada da cama de Jenny, fumando e bebericando um drinque cor de âmbar. Ela sempre parecia estar segurando um drinque com cubos de gelo tinindo, drinque este que as meninas sabiam ter vindo do bar. E tagarelava sem parar e ria muito alto de algo que não tinha graça nenhuma. Franny achava aquilo tudo triste, o jeito que a mãe de Jenny agia, e Jenny devia pensar o mesmo, pois preferia brincar na casa de Franny. Quando as meninas estavam no ginásio, a sra. Deever já se divorciara. Estava doente o tempo todo, e Jenny deixara de convidá-la para ir à sua casa. Ela e Jenny ainda eram boas amigas, mas Jenny sempre ia à casa de Franny e parecia ter adotado sua mãe. Vivia atrás dela, abraçava-a por qualquer motivo e conseguia assim substituir sua própria mãe, como se fosse uma mercadoria defeituosa que pudesse ser devolvida e trocada por um modelo melhor. Estranho como eram as coisas, pensava Franny agora. Jenny precisara de sua mãe quando eram crianças, mas agora era Franny quem precisava da mãe de Jenny.

Franny foi ver como estavam seus outros dois pacientes. Tirou-lhes a pressão, perguntou como se sentiam e rabiscou anotações em seus prontuários. Em seguida deu uma volta na sala para verificar o trabalho dos técnicos. O movimento era normal, rotineiro, todos estavam conectados, os aparelhos trabalhando silenciosamente, os técnicos, vestidos com jalecos brancos ou em tons pastel, calmamente monitorando seus pacientes. Como corresse tudo bem, resolveu fazer uma pausa enquanto as coisas estavam calmas. Foi ao banheiro e em seguida tirou um chocolate da máquina da sala dos médicos. Sua dieta não estava adiantando grande coisa, mas Michael não parecia se importar. Continuava a fazer seus passeios de bicicleta todas as tardes na ilusória tentativa de perder peso, mas os passeios não eram tão divertidos como outrora. Michael andava ocupado e não tinha mais tempo para encontrá-la em Putah Creek. Sentia falta das longas conversas e das caminhadas pelo Arboretum. Ainda conversavam, é claro, mas era diferente.

Franny mordiscou o chocolate e amassou a embalagem quando terminou. Resolveu que andava imaginando coisas, criando problemas onde não existiam. Não que pulassem na cama assim que ela chegava na casa de Michael. Ainda conversavam, muito até, e ele cozinhara para ela várias vezes, e ainda assistiam à TV juntos, e ela sempre passava a noite com ele quando ia lá. Michael ainda era doce e atencioso quando estavam juntos, e só porque não a encontrava em Putah Creek e não a levava a lugar algum... Ora, ela não devia culpá-lo, pois trabalhava muitíssimo. Decidiu telefonar para seu escritório na faculdade para saber se podia ir até sua casa naquela noite. Ela discou e ele atendeu ao primeiro toque.

— Sim — disse com severidade, demonstrando aborrecimento. Franny desejou não ter telefonado.

— Sou eu. Estou ligando em má hora?

— Para dizer a verdade, está. Vou me atrasar para a próxima aula.

— Sinto muito. Telefono mais tarde então. Ele soltou um suspiro impaciente.

— Franny — começou, interrompendo-se logo em seguida. Suspirou mais uma vez e passou alguns instantes em silêncio. Quando falou de novo, seu tom tornou-se menos áspero. — Está mesmo ligando em má hora. Por que ligou?

— Pensei que talvez pudéssemos passar a noite juntos. Talvez jantar em algum lugar. — Ela o ouviu tamborilar os dedos na mesa.

— Preciso trabalhar até tarde — disse. Houve uma pausa e o tamborilar parou. — Vá lá para casa às nove horas. Franny?

— Sim?

— Vista seu uniforme de enfermeira hoje à noite. Não o jaleco. Seu uniforme. O vestido branco, os sapatos brancos e as meias brancas, a touca, o estetoscópio, enfim, o traje inteiro. Tenho uma surpresa para você. — Desligou abruptamente.

Franny pôs o fone no gancho e sorriu. Michael sempre tinha alguma surpresa reservada para ela. O mês que passou fora esclarecedor. Queria tanto ter uma confidente. A pessoa mais próxima era a sra. Deever, e não se via discutindo sexo com ela. Pensou em sua irmã: Nora saberia o que dizer a respeito destas coisas. Pegou o telefone mais uma vez e discou o número do Sacramento Bee. Depois desligou, sem deixar recado. Decidiu, afinal, que não queria discutir este assunto com Nora. Era pessoal demais.



Mais tarde, naquela mesma noite, Franny aconchegava-se em Michael. Estava acordada, mas ele respirava profundamente, já quase adormecido, deitado de barriga para cima. Haviam se fartado com uma fantasia de Michael que envolvia um médico e uma enfermeira, com a mesa da sala de jantar fazendo as vezes de uma mesa de exames. Ele dissera que se ela quisesse manter seu emprego teria que atender às suas necessidades, assim como às dos pacientes. Usara um jaleco branco e luvas cirúrgicas de látex e a fizera chamá-lo de doutor. Ele desenrolara um pedaço de veludo vermelho que continha uma série de reluzentes instrumentos de aço inoxidável, alguns médicos, a maioria não. Isto era novidade para Franny. Até conhecer Michael, não sabia que as pessoas satisfaziam suas fantasias. Ele a conduziu, examinando-a com os instrumentos, cutucando e remexendo cuidadosamente, persuadindo-a a brincar também. Então ele lhe deu sua recompensa: tocou-a como ela gostava de ser tocada e brincou com ela até estar pronta para gozar. Mandou-a fechar os olhos e se entregar à sua fantasia, fazendo-a sua, e durante isto tudo falou com ela num tom firme e persuasivo, induzindo-a a ir adiante, empurrando-a com as palavras, e ela teve a preocupante sensação, até mesmo enquanto gozava, de que ele a preparava, orientava-a, para algo mais.

Ela ouvia a respiração de Michael, profunda e tranqüila, olhando seu peito levantar e baixar. A lua invadia o quarto através de vaporosas cortinas. Uma árvore balançando ao vento com galhos que se estendiam como as mãos de um mendigo lançava sombras pálidas, fantasmagóricas, através da janela do quarto escuro. Brincou com o cabelo preto em seu peito até que ele, irritado, parou-a, pondo a mão sobre a dela. Ela queria lhe dizer alguma coisa, mas não sabia por onde começar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom seu blog ja estou seguindo abraços
http://blogandodemadrugada.blogspot.com/