sábado, 12 de fevereiro de 2011




Enquanto cruzava o campus da UCD no último dia de outubro, Frances Tibbs compreendeu que, pela primeira vez na vida, estava apaixonada.
Ou melhor, pensava estar apaixonada. Ainda não o dissera em voz alta, não testara as palavras em sua boca, mas sentia que era amor: tudo ao seu redor parecia ter se tornado fresco, novo e excitante.
Então um homem parou bem na sua frente e quase a matou de susto. Agarrou os freios da bicicleta e derrapou, desviando dele por pouco. Uma meia de náilon, metade de uma meia-calça, cobria a cabeça do homem. Em sua mão direita, ele carregava uma enorme arma, talvez um rifle ou uma espingarda. Franny não sabia a diferença, mas, ao olhar com mais cuidado, viu que não parecia real. Era menor do que imaginava ser o tamanho de um rifle e parecia de plástico.
Plástico.
Uma arma de brinquedo. Era Halloween, lembrou. Dia das Bruxas. O homem, na verdade um estudante da universidade, ria, satisfeito com o susto que lhe causara. Seguiu em frente, empunhando seu rifle.
Sentindo-se perfeitamente idiota, subiu na bicicleta e acompanhou Putah Creek pelo norte. A água, represada do lado norte do córrego, era rasa, parada e de uma cor esverdeada e insalubre.
Exalava um cheiro de coisa velha e podre que ela ficou contente em deixar para trás. A partir daí o caminho tornava-se aprazível, com fileiras de árvores e vegetação densa de um verde escuro. O ar cheirava a terra e a mato, odores de uma floresta. Pedalava até lá na esperança de encontrar seu novo amigo, Michael.
Não conseguia explicar exatamente por que ele a atraía. Só sabia que pensava nele constantemente e que, desde que o conhecera, sua vida adquirira um novo brilho, abrindo-lhe um novo leque de possibilidades. De certa forma, lembrava-lhe o pai, um homem paciente com quem sempre contara para protegê-la. Já fazia tanto tempo que seu pai e sua mãe haviam morrido e, embora tivesse uma irmã, sentia-se sozinha no mundo. Mas Michael tinha empatia, parecia compreender toda a sua história com um simples olhar. Era uma sensação gostosa.
Descendo uma ladeira, ganhou velocidade. Andar de bicicleta fazia parte de seu novo regime para emagrecer. Tinha vários caminhos favoritos: as casas ensolaradas da parte oeste de Davis, a
ciclovia Howard Reese, que seguia Russell Boulevard até Cactus Corners, e o caminho que fizera hoje, e que fazia com maior freqüência, o que margeava Putah Creek na extremidade sul do campus. Era estreito e rodeava o Arboretum da universidade, um enclave de bosques, com arbustos e árvores: sequóias canadenses, pinheiros e eucaliptos. Franny adorava este lugar. Havia mesas de piquenique sob as árvores, lascas de madeira no chão, folhas mortas se decompondo na terra, e um cheiro de coisa antiga que evocava tempos passados. Era o cheiro úmido de lugares há muito esquecidos, de civilizações antigas enterradas sob camadas de detritos e matéria em decomposição.

Atravessou uma ponte de madeira para chegar até um morro coberto de grama, do outro lado. Neste ponto, o córrego se alargava transformando-se numa poça larga e escura, local ideal para observar os patos. A esta hora do dia, bem de tardezinha, o campus se aquietava e o local tomava-se seu. Desceu da bicicleta e sentou-se na grama, perdendo-se em devaneios, esperando que Michael viesse. A brisa estava fresca, mas não tão fresca como ficaria dali a algumas semanas, quando o nevoeiro se acomodaria e invadiria os ossos. O céu tinha uma cor desbotada de água suja, cinza e chapada. A brisa ondulava a superfície da água com suavidade e farfalhava pelas copas das árvores. Folhas vermelho-amarronzadas esvoaçavam ao seu redor, carregadas pelas repentinas rajadas de vento.

Franny abraçou os joelhos para manter-se aquecida. O gramado havia sido aparado recentemente e emanava um cheiro fresco e úmido de capim cortado. Anos antes, quando era criança, seu pai a trouxera a este local com Billy, seu irmão. Nora, a irmã mais velha, já era então adolescente e não quisera acompanhá-los. Mas Franny e Billy adoravam o Arboretum e algumas vezes ficavam simplesmente sentados com os olhos fechados como que em transe, absorvendo os sons à sua volta. Ouviam seu pai, um cientista ambiental, explicar a ligação do homem com a natureza. Existe um elo evolucionário, ele explicara mais de uma vez, desenvolvido através de milhares de anos, que liga as pessoas de forma inextricável a tudo que há a seu redor, à terra, ao sol, ao céu. E aqui, ao ar livre, com o som do vento ziguezagueando por entre as árvores, o ocasional grasnar de um pato, o barulho dos pneus de algum ciclista, de alguma forma, ela se sentia calma. Não sabia se era a força da natureza ou a força protetora da doce lembrança de seu pai. A esta altura haviam se tomado unas.

Dois universitários, um rapaz e uma garota, atravessaram a ponte de braços dados e pararam na metade para olhar a água que corria logo abaixo. Pensativa, Franny os observava, seus sorrisos sonhadores, seus rostos tranqüilos. Era óbvio que se amavam, e isto a fez sorrir. Podia ouvi-los conversar, mas não distinguia as palavras. Seus risos levitavam até as copas das árvores.

Mais adiante, na direção do campus, ela procurou por Michael. Conhecera-o neste mesmo local há três semanas. Ela trouxera um saco de pão dormido para alimentar os patos quando alguém falou às suas costas:

— Você não é estudante.

Surpresa, ela se virou. Era a primeira vez que via Michael. Era alto e moreno, com cabelos escuros que se tornavam grisalhos nas têmporas. Calculava, pelas rugas em seu rosto, que devia ter quarenta e tantos anos. Tinha uma expressão sábia e quase cínica, como se já tivesse visto e feito de tudo. Com as duas mãos nos bolsos, ele a encarava sem piscar, seu rosto inescrutável. Franny abaixou a cabeça. Quando olhou para cima, ele ainda a olhava com olhos frios e insensíveis, ou assim ela pensou. Mas, lentamente, um sorriso foi surgindo em seus lábios. Ela estava pouco à vontade sendo o centro de suas atenções e sentia que ele a analisava por algum motivo, tentando chegar a alguma conclusão a seu respeito.

— Não, não sou estudante — respondeu. Ficou ruborizada, como se tivesse feito algo de errado, embora soubesse que nada fizera. Desviou o olhar. Arrancou um pedaço do pão e atirou-o para um pato. Havia cinco à sua frente, todos com reluzentes cabeças esverdeadas. Vieram todos brigar pelo pão. Ela atirou o resto e enfiou a mão na bolsa para pegar mais. O homem não se movera, e ela o sentia observá-la, deixando-a insegura.

— Você não parece ser estudante — disse ele finalmente, fazendo com que Franny se perguntasse por que não. Não terminara a faculdade há tanto tempo assim. — Já vi você aqui, deitada na grama, alimentando os patos. Sempre vem aqui mais ou menos a esta hora, sozinha.

Franny lançou-lhe um olhar rápido e enviesado, mas nada disse. Era um pouco desconcertante descobrir que alguém a observava há algumas semanas. Olhou para ele mais uma vez. Tinha traços bem definidos: queixo quadrado, nariz reto e exato, corpo magro mas forte. Não era o que chamaria de bonito, ela pensou, mas era imponente. Imponente até demais. Queria que algo nele fosse amorfo, algo que o tornasse menos intimidador, talvez umas gordurinhas na cintura, ou uma papada.

— Permite? — perguntou ele e, sem esperar a resposta, agarrou-lhe o pulso e ergueu seu braço para tirar a fatia de pão de sua mão. Franny, atordoada com o grau de intimidade contido no gesto, permaneceu calada. Assistiu enquanto ele alimentava os patos com o seu pão.

— Venho aqui a esta hora do dia esperando encontrá-la. Quando não a encontro, sinto que meu dia está incompleto, que algo está faltando. — Virou o rosto de leve e olhou para ela com um brilho divertido nos olhos. — Conto com você como conto com a primeira xícara de café do dia.

Franny sorriu; jamais havia sido comparada à cafeína. Em seguida, ele se apresentara, e há três semanas vinham se encontrando neste mesmo local. Não era sempre que vinha. Às vezes passava

vários dias sem aparecer e ela ficava ansiosa, com um nó no estômago perguntando-se se o veria outra vez. Mas então ele aparecia e começava a conversar, sem explicar sua ausência. Ele tinha um jeito sereno, relaxado, que a deixava à vontade para falar o que quisesse. Na verdade, ela é que o deixava falar. Ele parecia não se importar, como tantas pessoas, e não a forçava a se abrir. Ele parecia saber, de forma intuitiva, que ela mudaria quando estivesse pronta. Ficava grata por isto, pois a maioria das pessoas desistia dela antes que Franny se sentisse bem com elas. E foi assim que logo se pegava pedalando na direção de Putah Creek, não pelo exercício, e sim com o simples intuito de encontrá-lo, ficando desapontada quando ele não aparecia.


Michael era professor do departamento de música; era sofisticado e inteligente. Ele não fazia o tipo que, segundo imaginara, se interessaria por ela. Não que ela tivesse um tipo específico em mente. Saíra com alguns homens, mas as coisas nunca pareciam dar certo. No mês passado, Nora a arrastara para uma festa com colegas do Bee e ela conhecera um homem. Era repórter, como Nora, e tinha cabelos louros e uma aparência tão franca, tão íntegra, uma inocência tão pueril que confiou nele instintivamente. Ele parecia sincero, mas na manhã seguinte, depois de ter dormido com ele, ele lhe disse, muito acabrunhado, que bebera demais. Franny só podia culpar a si própria. Ela jamais agira de forma tão impulsiva, dormindo com um homem que acabara de conhecer. Havia sido impetuosa demais, desesperada demais, esperando que o sexo, que nem fora tão bom assim, levasse a uma maior intimidade. Não levou. Tomaram café da manhã no Food for Thought, na rua K, mas o desconforto dele ficou patente durante toda a refeição. Ele foi educado demais, solícito demais: cometera um erro e tentava se redimir de forma cortês. Ela via apreensão, piedade e tensão em seus olhos. Se não tivesse se sentido, ela mesma, tão mal, teria sentido pena dele. Depois disso, esperou que ele telefonasse durante vários dias, e, quando viu que ele não ligaria, ela mesma ligou. Foi embaraçoso e humilhante. Talvez pudessem ser amigos, ele disse gentilmente. Ela desligou após recusar a oferta bem-intencionada porém pouco sincera.

Michael jamais se comportaria assim, ela pensou de repente.Michael. Descobrira que ele tinha o dobro de sua idade, quarenta e oito anos, apenas seis anos a menos do que seu pai teria. Mas ela se sentia bem com ele, como jamais se sentira com outra pessoa. Às vezes, em casa, ela sonhava com Michael. Ela o inseria no contexto de sua vida, fingia que era seu namorado. Não tinha a mínima idéia do que ele pensava a seu respeito, nem mesmo se pensava nela. Embora fosse amável e parecesse gostar realmente dela, ele parecia fora do seu alcance.

Ouviu o ruído de passos na grama, bem atrás de onde se encontrava, e sorriu. Sabia que era Michael.